O nascimento de um movimento que vem humanizando as ruas da cidade de Manaus.

O post anterior me fez perceber que mostrar a experiência das pessoas, seu dia a dia, seus anseios, seus medos e suas conquistas, ajudam e ensinam a tantas outras como levar a vida de outra maneira. Hoje, venho contar a vocês como surgiu o Movimento Pedala Manaus, e isto se mistura a vida de nosso querido Ricardo Braga Neto, carinhosamente chamado (não sei se por estar no meio da floresta) de Saci.

Uma pessoa de um coração do tamanho da Amazônia, que conquista a todos por onde passa, conta aí Saci:

***

O que poderia levar um biólogo a deixar o contato com a natureza e abandonar sua carreira acadêmica para voltar toda sua dedicação para incentivar o uso da bicicleta em Manaus? A verdade é que sempre senti um profundo desconforto ao perceber que muito do que aprendemos em ciência é simplesmente arquivado, ainda que algo possa representar uma grande melhoria na qualidade de vida para a sociedade. Mas o que a bicicleta tem a ver com isso? Muito. Ela representa parte da solução para problemas de mobilidade urbana, promove a saúde dos usuários e é democrática, sendo um instrumento de transformação dos centros urbanos. Só falta um incentivo.

Nem sempre pude andar tanto de bicicleta, mas nunca me esqueci da liberdade que ela me proporcionou quando a descobri. Sou paulista da capital, criado na fervura da cidade mais populosa do continente americano, mas meus pais fugiam para o litoral aos finais de semana. Motivado por clássicos da sessão da tarde como ‘Goonies’, eu costumava colocar um sanduíche na mochila e saía para explorar Peruíbe. Não tinha mais de 10 anos, mas senti que a bicicleta iria me acompanhar pela vida afora. Em São Paulo, a bicicleta cumpria um papel fundamental para a alegria de qualquer adolescente, garantindo meu direito de ir e vir, mas quando passei em Biologia na Universidade de São Paulo ganhei um carro e comecei a usá-lo cotidianamente. Mesmo com o conforto, sentia que algo me faltava então de vez em quando ia pedalando os 60 km de ida e volta até a USP. A alegria era imensa, eu conseguia fazer o percurso em menos tempo que de carro, economizando uma grana e sem tempo desperdiçado.

 Caricatura feita pelo Euros durante Programa Roda Viva da TV Cultura.

 

Cidadão manauara

Quando decidi me mudar para Manaus para fazer mestrado em Ecologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia em 2004 eu trouxe minha bicicleta, mas assustado com o trânsito caótico fui me intimidando ao ponto de deixar juntar poeira e teias de aranha por anos. Acabei indo morar na Europa por uns meses e perceber que a bicicleta fazia parte do cotidiano da população, inclusive de crianças e idosos, sob o sol do Mediterrâneo ou a neve da Escandinávia, me abriu o horizonte. Quando voltei a Manaus, decidi parar de reclamar e em uma bela tarde de janeiro de 2010 lancei a ideia entre alguns amigos, a maior parte do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Poucas semanas depois surgiu o Pedala Manaus.

 Uma das primeiras pedaladas do Pedala Manaus (Jardim Botânico/Reserva Ducke).

 A partir da ideia inicial, começamos a nos organizar para defender a bicicleta como um meio de transporte, lazer e esporte em Manaus e lançamos o blog do Pedala Manaus. Em junho de 2010 fizemos nossa primeira grande pedalada em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMMAS), que contou com uma rota do Jardim Botânico ao Parque do Mindu, onde tivemos uma mesa redonda para debater o papel da bicicleta como meio de transporte. Em seguida, em parceria com o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam) enviamos uma proposta para a Prefeitura de Manaus para planejar um sistema de ciclovias, mas infelizmente não houve continuidade por parte do poder público. Essa articulação toda começou a ganhar reconhecimento da mídia e aos poucos fomos conquistando o apoio inestimável da sociedade, mas não avançamos mais porque a demanda ainda não era visível.

 

Da teoria à prática

Faltava o contato direto e frequente com a sociedade. Já nos reuníamos toda semana para pedalar, mas acreditamos que se organizássemos passeios semanais, mais e mais pessoas iriam se motivar e começariam a pedalar junto com a gente. Foi assim que surgiu a Terça Tradição em fevereiro de 2011. A princípio, reuníamos meia dúzia de caboclos, mas em poucas semanas o número aumentou rapidamente de 15 a 30 pessoas para cerca de 250 a 300 pessoas por semana.

 Uma das primeiras Terças Tradição da história do Pedala Manaus.

 

Pouco tempo depois, centenas de pessoas já participavam das terças.

O aumento expressivo no número de pessoas nos motivou a oferecer mais atividades para atender o interesse daqueles que não podiam pedalar as terças e surgiu a Quinta Alternativa. Essa atividade acabou se configurando como uma pedalada mais extensa para ciclistas que já estavam pedalando bem. Por outro lado, sentimos que uma grande parte dos ciclistas novatos precisava de mais atenção e lançamos a Quinta Coletiva voltada diretamente para eles. A ideia era levar o ciclista iniciante a vivenciar sua bicicleta nas ruas da cidade, com alguns toques sobre mecânica, troca de marchas, equilíbrio e comportamento no trânsito. As atividades sempre estão lotadas e tem ajudado a formar dezenas de novos ciclistas em Manaus que rapidamente aprendem a manejar a bicicleta com tranquilidade e segurança.

 Quinta Coletiva é uma atividade voltada para os ciclistas iniciantes.

Para fazer tudo acontecer, não basta ter apenas boas ideias, é preciso suor. É importantíssimo enfatizar que nesse breve tempo de existência, agregamos várias pessoas que chamam a responsabilidade para elas mesmas e de forma voluntária fazem o melhor que podem para atuar de forma efetiva no incentivo ao uso da bike. Essas pessoas são os coordenadores e monitores do Pedala Manaus, os principais responsáveis em promover toda essa mudança que está acontecendo.

 

Pequenas mudanças

Uma das grandes contribuições que o Pedala Manaus já deu pode ser vista pelo imenso aumento no número de ciclistas na cidade. Esse aumento é refletido pelo número de grupos de bicicleta que surgiram (por exemplo, Equipe Surubim de Bike, Tambike, Amazonas de Bike e Pedala 10 Torres) e o fortalecimento de grupos mais velhos que estavam com atividades esporádicas, como os Amigos do Pedal, Saga Bike e Jungle Bike. Um indicativo importante desse interesse foi o grande aumento no volume de vendas de bicicletas, peças e acessórios em Manaus, aquecendo o mercado como nunca acontecera antes. Ciente da importância em promover a bicicleta como atividade esportiva, o então Secretário Municipal de Desporto e Lazer, Fabrício Lima, organizou o Dia Mundial Sem Carro em Manaus nos últimos anos e o aumento da participação da última edição no ano passado também mostra como o Pedala Manaus conseguiu mobilizar a sociedade manauara.

Ricardo Braga Neto, Ricardo Romero e Fabrício Lima no Dia Mundial Sem Carro em 2011.

Um ponto que merece destaque foi o concurso ‘Bike Itinerante’ da Caloi que o Pedala Manaus ganhou no final de 2011. Manaus foi uma das cidades que concorreu a uma Urbe, a nova bicicleta dobrável da Caloi. O Pedala recebeu a novidade por alguns dias para experimentar e filmar a experiência. O vídeo abaixo foi nossa contribuição, mostrando um pouco das belezas da cidade, pontos turísticos e fazendo uma leve crítica em relação à proibição de ciclistas na Ponte Rio Negro. O vídeo foi de longe o mais votado e conquistamos não apenas o direito de trazer a Urbe pro Norte do país, mas mostramos que a união da nação pedaleira em Manaus é muito forte.

Assista ao vídeo a Caloi Urbe do Pedala Manaus.

Uma das grandes vontades do Pedala no momento é oferecer passeios regulares para a criançada. Nós já fizemos duas atividades pontuais em parceria com a Rede Amazônica, conhecidas como ‘Kids em Movimento’, em que as crianças pedalaram bastante com orientação dos coordenadores, despertando um gostinho de quero mais. Parques, bairros tranquilos e ciclovias são locais excelentes para garantir uma brincadeira saudável e segura.

As crianças adoram pedalar e aprendem rápido.

 

Falta de segurança

Graças a uma série de cuidados, preocupação com segurança e sentimento de responsabilidade por todos participantes, nunca tivemos nenhum acidente grave envolvendo os ciclistas no Pedala Manaus, mas sabemos que acidentes graves aconteceram aqui e em outras cidades do Brasil. No começo de 2012, motivados por uma sequência de mortes envolvendo ciclistas no trânsito, cerca de 40 cidades de todas regiões do Brasil se organizaram em uma Bicicletada Nacional para chamar a atenção do poder público sobre a necessidade de investir em infraestrutura e educação para garantir a segurança daqueles que usam a bicicleta como meio de transporte. Manaus estava entre elas e mostrou ao Brasil que estamos nos organizando pela melhoria das condições para quem quer pedalar na maior cidade do coração da Amazônia.

Bicicleta Nacional em Manaus no começo de 2012.

Preocupados com a situação, a coordenação do Pedala Manaus decidiu fomentar um debate aberto entre a sociedade civil organizada, o poder público e a iniciativa privada. O resultado foi o 1º Fórum de Bicicletas Manaus realizado com o suporte da Comissão de Transporte, Trânsito e Mobilidade da Assembleia Legislativa do Amazonas (ALE-AM). O fórum ofereceu um debate abrangente sobre diversos temas, dentre os quais destacamos a bicicleta como meio de transporte, planejamento cicloviário, educação, políticas públicas, infraestrutura urbana, meio ambiente, saúde coletiva e economia, além de pedaladas e workshops. Durante o fórum, todos os palestrantes que exercem funções vitais tanto em escala municipal quanto estadual foram bastante positivos e reconheceram a importância de viabilizar a bicicleta como um meio de transporte em Manaus, dotando a cidade de infraestrutura necessária.

1º Fórum de Bicicletas Manaus realizado em abril de 2012 na ALE-AM.

Para encerrar o 1º Fórum de Bicicletas Manaus foi realizada a Pedalada Sustentável do Rio Negro, feita pelo Pedala Manaus em parceria com o Detran/AM. A pedalada reuniu centenas de ciclistas para atravessar a Ponte Rio Negro até o Município de Iranduba, onde houve o plantio de mudas de árvores doadas pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMMAS). Desde a inauguração da ponte o trânsito de bicicletas não era permitido, mas as bicicletas atravessaram livremente.

A ponte Rio Negro é um local perfeito para pedalar em Manaus.

 

Próximas pedaladas

Costumamos nos referir ao Pedala Manaus como um movimento e não apenas um grupo porque nossa intenção é incentivar o uso da bicicleta de forma coletiva e mais abrangente possível, atuando na promoção de passeios, articulação política, capacitação, campanhas educativas, acesso à informação, dentre outras atividades. Vamos continuar pedalando nessa direção, motivados e fortalecidos por depoimentos maravilhosos como o artigo do Dia das Mães que foi postado no blog Manaus em Movimento. Parabéns a todos nós que acreditamos que juntos podemos fazer a diferença!

 

Fonte: Blog Manaus em Movimento por Cris Sotto Mayor