Os anos setenta corriam soltos com o milagre econômico promovido pela ditadura. O famoso ministro Mário Andreazza aparecia na TV contando as peripécias de como era construir uma rodovia no meio da Amazônia. Para quem morava no meio da selva, ter uma estrada para poder chegar a São Paulo era uma novidade sem tamanho. Para dois ciclistas de Manaus era a oportunidade de poder chegar ao sudeste pedalando.

Com essa idéia na cabeça Américo Vieira e Rubens Carneiro resolveram se antecipar a conclusão da tão falada ligação com o sul por terra, e resolveram fazer uma viagem teste de bike pela Amazônia usando a nova ligação com Porto Velho. São 871 km entre Manaus e a capital de Rondônia. Eles fizeram o trecho em cinco dias. E depois ainda voltaram pedalando. Tudo isso em 1976, num tempo que cicloturismo era uma palavra desconhecida. Alforje, selim de gel e câmbios que funcionam mesmo na lama eram luxos que, se existiam, passavam longe do norte do Brasil.

O planejamento do pedal

O planejamento da viagem se resumiu a uma mochila para cada com algum mantimento e uma muda de roupa extra, retirar o câmbio das bikes para evitar problemas no meio do nada e uma espingarda para proteção. Essa última providência foi exigência de Rubens que temia os animais. Os mantimentos acabaram faltando 175 km para o fim da viagem, a muda extra de roupa virou turbante ensopado em água para refrescar a cabeça e a espingarda virou moeda de troca por um guisado de macaco e mais alguns mantimentos. Américo conta que depois do primeiro dia de pedal, a espingarda atravessada nas costas incomodava tanto que parecia pesar uns vinte quilos: “mesmo eu ajudando a carregar, aquilo foi ficando cada vez mais pesado, virou comida depois de um dia”, relembra.

Histórias de cicloturista pela Amazônia

O acampamento se resumia a uma rede e um fogo no chão para cozinhar, bem no esquema sobrevivência na selva que eles aprenderam no exercito. Barraca? Tava na lista de luxos que eles dispensaram. Uma dispensa que fez falta um dia. No meio da madrugada a dupla foi acordada com um urro de onça. O barulho era tão forte que eles acharam que era uma fêmea a procura de um namorado. Em questão de minutos as bikes já estavam cortando a escuridão seguindo a trilha asfaltada. Américo relembra que por duas horas ainda ouviam os grunhidos vindos das entranhas da mata. Pedalar a noite era uma opção pra fugir do calor amazônico. Principalmente quando a chuva não vinha no meio da tarde. Nesses dias, nem mesmo molhando o turbante improvisado a cada dez quilômetros fazia a sensação de calor passar. E foi justamente num desses dias de calor que pedalando a noite a dupla se deparou com um outro bicho noturno. Américo sentiu que havia passado sobre um galho de árvore, mas não era bem isso. Era uma cobra que, ao ser atingida pela primeira roda, se voltou e enroscou na segunda. No reflexo, Américo só levantou os pés, freou e, quando deu, pulou da bike a deixando rodar pra frente. Depois foram horas para tirar a cobra da bike com a ajuda de uma lanterna e um galho de árvore de verdade.

De aventureiros a celebridades

A chegada a Porto Velho de dois ciclistas cortando a Amazônia vindo de Manaus foi uma novidade tão grande para a época que os dois foram alçados a celebridade em minutos. O último dia da viagem foi feito à base de água, pois a comida havia acabado naquela manhã, mas o que faltou de apoio durante a ida, foi recompensado na chegada. O governador de Rondônia proveu estadia e alimentação para os aventureiros e entrevistas foram dadas aos jornais locais. Curtiram a fama por dois dias aproveitando para descansar antes de pegar a estrada de volta para Manaus para completar os quase dois mil quilômetros de aventura. Lá, também, foram recebidos como intrépidos aventureiros. Como sabemos, a transamazônica enroscou e nunca foi uma estrada de verdade para que os dois pudessem realizar a viagem dos sonhos a São Paulo. A vida também levou cada um para um lado. Hoje, Rubens é taxista em Manaus e Américo mora em Curitiba e ainda continua no mundo das duas rodas. Ele opera viagens de cicloturismo e ajuda pessoas que sonham em pedalar com sua escola de bikers que recebe gente do Brasil todo. Mais de duzentas pessoas já passaram por suas mãos e nenhuma delas foi embora sem pedalar. Mais de duzentos é também o número de viagens que ele já promoveu levando pessoas para pedalar por puro prazer. O certo é que os dois amigos até hoje tem uma história incrível para contar. E, Américo, ainda sonha em percorrer esta estrada novamente levando junto, desta vez, seus amigos do sul do Brasil para conhecer o que é pedalar na Amazônia.

Fonte: www.OndePedalar.com.